Gostaria de complementar a reflexão sobre a encíclica Fé e Razão de João Paulo II, empreendida em dois números anteriores da Shalom Maná, com este artigo sobre a importância da amizade e da ética no processo de busca da verdade. Existe no mais íntimo do homem o desejo de conhecer a verdade, um amor à sabedoria. De fato, a palavra filosofia, como sabemos, vem do grego philos (amor de amizade) – sophia (sabedoria). Na origem da filosofia encontramos, pois, a amizade.
Antes mesmo de descobrir o que venha a ser a sabedoria ou a verdade, o homem que se auto-percebe descobre em si o sentimento do amor, a amizade, uma certa atração por algo que é exterior a si mesmo, mas que o completa, faz com que ele se admire, se encontre, sinta-se feliz. Este sentimento do amor está presente no homem e ele o experimenta em relação àquilo que é verdadeiro, bom e belo.
O homem só procura a verdade porque a ama. O amor é condição de possibilidade do próprio filosofar. Não há como filosofar de modo fiel a si mesmo e à verdade sem amar. Para manter-se fiel a si mesma e à sua missão, a filosofia não pode omitir-se de falar sobre o amor. O homem é essencialmente um ser que ama. Ao buscar a origem do homem o filósofo de algum modo precisa remontar ao amor. Ao refletir sobre o agir humano é preciso igualmente atentar para o fato de que o homem se move por amor. A ética deve preocupar-se com o que o homem ama e como ama. Uma das principais tarefas que competem ao filósofo é a de compreender o que o amor representa para a vida do homem.
“Cada um quando crê confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. (...) Na vida duma pessoa são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal”. (FR 31;32)
Tudo aquilo que sabemos se fundamenta de um modo ou de outro na confiança que depositamos nos outros. Seria impossível que cada homem pudesse viver sozinho e construísse por sua conta, isoladamente, as suas próprias convicções. O cumprimento específico da natureza humana está na confiança recíproca (cf. FR 33).
Aqui aparece a importância da amizade no caminho de busca da verdade: por mais imperfeito que possa ser o conhecimento por crença ele é sempre presente e necessário, sendo muitas vezes “mais rico que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal”. (FR 32)
O caminho de busca infinita do homem, ao mesmo tempo que é procura da verdade, o é de um amigo, de alguém em quem confiar. Jesus Cristo que se apresenta a nós como “Verdade”, ao mesmo tempo nos diz que não nos trata como servos, mas como amigos. Nele encontramos realizado o objetivo da nossa busca.
Na natureza mesmo da revelação de Deus encontramos o Seu amor, o Seu desejo de estabelecer comunhão, de estar presente em nossas vidas, de relacionar-se conosco como amigos. Daí o caráter fundamental da amizade, do amor, na base de toda sabedoria humana ou divina. Se me descubro como um amante da sabedoria, ao mesmo tempo percebo que a sabedoria plena e total é uma pessoa que me ama por primeiro.
“Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é Amor” (1 Jo 4,7b-8).
No nosso mundo marcado pela desconfiança urge reencontrar o exemplo dos filósofos antigos, para os quais a amizade se constituía em contexto indispensável para o reto filosofar. “São Tomás de Aquino subordina toda a vida cristã ao conceito da amizade de Deus, enquanto a tentação da serpente no Paraíso consiste na fomentação da suspeita servil” .
Descubro cada vez mais a importância da amizade na minha vida e o seu valor para o crescimento na virtude, na sabedoria. Quantas vezes me perdi nos meus raciocínios, no meu isolamento, e quando cedia à necessidade de confrontar-me com os outros, com um amigo, de caminhar em dois como os discípulos de Emaús, meus olhos se abriram!
A busca da verdade não se limita ao campo teórico, mas alarga-se à dimensão ética. Também no campo dos valores morais o homem é capaz de encontrar a verdade segundo a qual somente poderá alcançar a felicidade. Daí a importância da vida moral.
Urge recuperar em nosso tempo a ligação essencial entre Verdade, Bem e Liberdade. A Igreja é convidada pelo Papa João Paulo II na Encíclica Veritatis Splendor a desenvolver “um intenso esforço pastoral no que diz respeito a esta questão fundamental” (VS 84).
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32).
Hoje em dia, as mesmas correntes de pensamento que negam a existência de uma verdade universalmente válida ou a capacidade da razão de chegar ao conhecimento da mesma, chegam ao cúmulo de “exaltar a liberdade até ao ponto que esta se torna um absoluto, que seria então a fonte dos valores éticos” (VS 32). Isto conduz a humanidade a uma “concepção subjetivista do julgamento moral” (VS 32). A crise de verdade enfrentada pela humanidade hoje comporta sérias conseqüências no campo ético. A negação da existência de uma verdade universal conduz inevitavelmente à negação de uma verdade universal sobre o bem. “A verdade é para a comunhão das liberdades, e somente nesta comunhão as liberdades são verdadeiras” (Pe. Mongillo, op).
“Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gal 5,1)
Assim como somente em Jesus Cristo podemos alcançar a plena Verdade a respeito da vida e do homem, também nele somente encontramos a resposta final para o problema da moralidade. Esta verdade sobre o bem da pessoa, longe de aprisionar o homem, o liberta, o impele a uma “operosidade criativa”, fazendo-o descobrir o autêntico significado da liberdade: “o Cristo Crucificado a vive plenamente no dom total de si e chama seus discípulos a partilhar da sua liberdade” (VS 85).
“Este período, de mudanças rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende o futuro, na sensação de estarem privados de pontos de referência autênticos. (...) Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até a borda do precipício, sem saber o que os espera” (FR 6).
Os jovens são sensíveis de um modo especial à vivência de autênticas relações de amizade. É próprio do jovem também a sinceridade na busca da verdade. Estes valores que são tesouros da juventude, o mundo de hoje, com as suas vãs filosofias, em muitos aspectos tem contribuido negativamente para fragilizar ou até mesmo destruir.
É muito comum que o jovem de hoje se apegue a modelos, a ídolos que às vezes ele busca em pessoas que admira: um cantor, um esportista ou ator de cinema. Aquele “ídolo” vai se tornar um referencial de comportamento a quem imitar.
Atentos às potencialidades da juventude, todos aqueles que desejam se empenhar no retorno ao reto caminho da busca da verdade devem estar conscientes que “os jovens precisam não somente ser amados, mas saber que são amados” (S. João Bosco). Redescobrir o valor da amizade como relacionamento a ser buscado a partir de mim e tendo como alvo a juventude de modo especial, não de modo instrumental, mas verdadeiro, é fundamental para resgatar no coração de cada jovem o crédito no homem, na vida, na Verdade.
Moysés Azevedo, fundador da Comunidade Católica Shalom, falando sobre o apostolado com os jovens , dizia que “o novo a ser construído no meio da juventude tem muito a ver com o acolhimento. A questão crucial quanto aos jovens é de identidade, de amor. Se temos o coração para os jovens, um amor especial por eles, teremos atenção, tempo, criatividade, discernimento para saber como agir com eles. O primeiro passo é a paixão pela juventude”.
De fato a atitude de Jesus para com o jovem que lhe questionava sobre o que fazer de bom para alcançar a vida eterna, é primeiramente de amor, de acolhimento; só depois anuncia a Verdade (cf. Mc 10,17-22): “Fitando-o, Jesus o amou e disse...”
Jesus Cristo é o Amigo que anuncia a Verdade. É preciso apresentá-lo ao jovem de hoje, é preciso conduzir este jovem ao amor da Sabedoria, ao amor de Cristo. Como dizia o Papa na sua mensagem aos jovens reunidos em Manilla por ocasião da X Jornada Mundial da Juventude: “O desejo de participar da missão de Jesus nasce do encontro com Jesus mesmo: ‘A fonte mais profunda da nossa alegria é o fato que o Pai mandou o Filho para salvar o mundo’. Ele é a chave para compreender a história do criado e, especialmente, a história do homem. Nesta resposta se decidem a liberdade e a autenticidade de cada homem, a sua felicidade e o sentido da sua vida; dar um significado digno à própria existência, fugindo da mentira dos falsos mestres que declaram mortos os ideais e seminam a dúvida no coração dos homens, é para cada jovem o desafio a vencer”.
Fazendo eco às últimas palavras do Papa na Encíclica Fides et Ratio, concluo fazendo referência à Virgem Maria que, na sua humanidade, acolheu o Verbo Encarnado, a Verdade, a Sabedoria de Deus. Ela, mais que ninguém, soube mergulhar nos mistérios de Deus e procurou compreendê-los até onde lhe era possível, transformando a sua limitação em ato de fé e abandono ao Pai. Nela se realizou a união mais perfeita e profunda entre humanidade e divindade.
Que possamos descobrir como homens inteligentes e crentes a sabedoria dos santos monges da antigüidade cristã sobre o “filosofar em Maria” e que “a Sede da Sabedoria seja o porto seguro para quantos consagram a sua vida à procura da sabedoria!” (FR 108).
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